Pedro Marques garante que “não há nenhum utente da Lezíria desprotegido do acesso a cuidados de saúde”
12 Janeiro 2025, 18:59Na segunda parte da entrevista, o novo presidente do Conselho de Administração da Unidade Local de Saúde da Lezíria (ULS Lezíria), Pedro Marques, aborda a temática da escassez de médicos e profissionais de saúde, bem como os desafios que afetam o setor na região.
Considerando esta situação transversal a todo o país, o novo administrador aponta para alguns “problemas geracionais” que afetam a classe médica nos dias de hoje. A necessidade de valorização profissional e pessoal, aliada à falta de “tempo de lazer” entre os profissionais médicos, são alguns dos fatores que, na perspetiva de Pedro Marques, afastam os clínicos do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Embora reconheça não ter uma “solução milagrosa”, Pedro Marques defende que “a dignificação da profissão de médico ao serviço do Estado e a criação de condições que a tornem simultaneamente competitiva e prestigiante para quem a exerce” podem ser o caminho para reter médicos no SNS.
O novo administrador da ULS Lezíria assegura ainda que “o Ministério da Saúde está, neste momento, a envidar esforços para que as condições de fixação de médicos sejam competitivas em relação à oferta existente nos dias de hoje”.
Notícias do Sorraia (N.S): Qual será o segredo para atrair médicos para o Hospital de Santarém?
Pedro Marques (P.M): Atualmente, existe um problema geracional no novo corpo de médicos que está a fazer o seu percurso de formação geral e, sobretudo, de formação específica, para aqueles que escolhem seguir essa via. Há muitos médicos que completam a formação geral e não demonstram interesse em realizar uma formação específica, ou seja, em tornarem-se especialistas. Por outro lado, há médicos que concluem a sua especialização e não pretendem vincular-se ao Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Não se trata de um problema específico de Santarém ou da Lezíria, mas sim de uma questão nacional, que tem também uma dimensão cultural e geracional. Muitos profissionais preferem não assumir, como faziam os médicos mais experientes, um compromisso para toda a vida. E é perfeitamente normal que assim seja. Hoje em dia, os médicos são mais móveis: podem trabalhar no estrangeiro, participar em programas de intercâmbio, envolver-se em projetos de cooperação com países em desenvolvimento, ou optar entre o setor público e o privado.
O Ministério da Saúde está, neste momento, a envidar esforços para tornar as condições de fixação de médicos mais competitivas em relação àquilo que é, atualmente, a oferta existente no mercado.
De facto, há muitos médicos que preferem não se vincular, optando frequentemente por trabalhar em regime de tarefa. No curto prazo, isso pode ser vantajoso para eles. No entanto, não sei se será tão benéfico para os hospitais, nem para reforçar uma identidade cultural, neste caso, de uma entidade como a Unidade Local de Saúde da Lezíria.
Os jovens de hoje procuram equilíbrio. Não querem ser escravos do trabalho; procuram dias livres, momentos de lazer, oportunidades para investigação e viagens. Existe, claramente, uma necessidade de ajustamento, que é um problema societal e não apenas exclusivo dos médicos. Contudo, no caso específico da medicina e da necessidade de atrair médicos, isso tem impacto.
Existem condições que podem ser criadas para reter médicos, mas não há soluções milagrosas. Não se trata apenas de captar ou atrair talento. Afinal, quem não estiver disposto a permanecer não será possível de reter.
Por isso, acredito que tudo depende da dignificação da profissão de médico ao serviço do Estado. Essa dignificação deve tornar a profissão competitiva, prestigiante e valorizada para quem a exerce. Deve também justificar e enaltecer a opção de carreira que os médicos escolhem.
Uma das bases da teoria económica é que os recursos, por definição, são escassos. No caso da saúde, isso reflete-se no facto de termos necessidades e sonhos ilimitados, mas recursos que são finitos e limitados. Gerir recursos implica, muitas vezes, tomar decisões com um custo de oportunidade. Não podemos ter tudo; é necessário priorizar.
O nosso foco será garantir aquilo que é mais importante, que melhor responde às necessidades da população e que esteja alinhado com os recursos disponíveis num determinado período de tempo. É isso que vamos procurar fazer.
N.S: Nas últimas semanas, surgiu também a ideia da criação de um Hospital Universitário, numa integração entre o setor público, o setor privado e o Politécnico. Defende essa ideia como potenciadora da atração de novos médicos?
P.M: Acho que não devo manifestar uma opinião sobre essa questão nesta altura. Sei que estão a ser desenvolvidos esforços para que, na Universidade de Évora, possa ser aberto um curso de Medicina. Recentemente, foi inaugurado um curso na Universidade Católica. Nos últimos anos, temos assistido a um aumento da oferta formativa na área da Medicina.
Não consigo afirmar se o número de profissionais que estão a entrar no mercado é inferior às necessidades do país. O que sabemos, no entanto, é que, nos últimos anos, sempre que são abertos concursos, há vagas que ficam desertas, precisamente porque muitos médicos preferem não se vincular. Não sei se o aumento da quantidade de formandos resultará num maior número de profissionais dispostos a ficar no SNS. No entanto, acredito que estamos a formar um número interessante de profissionais de saúde.
Não vou entrar nesse debate porque correria o risco de “me expor” e assumir posições em discussões políticas para as quais não tenho informação ou conhecimento suficientes. O que posso garantir é que os recursos que forem possíveis de formar e colocar à disposição da Unidade Local de Saúde serão alvo da nossa luta e dedicação, sejam eles humanos ou não humanos.
N.S: Há quem defenda uma solução semelhante à da Força Aérea, em que quem se forma numa instituição pública tem um período obrigatório de permanência nos serviços públicos, ou, em alternativa, tem de indemnizar o Estado. Poderia ser uma solução?
P.M: Essa ideia já é discutida há muitos anos. De facto, em algumas regiões do país existem vagas especiais, em que as pessoas recebem formação e, caso decidam desvincular-se do serviço público de saúde, têm de compensar financeiramente o Estado.
É uma questão que frequentemente surge em discussão: se, após o investimento público feito na formação dos alunos – mesmo pagando propinas –, se deve exigir alguma contrapartida, sabendo que o custo real da formação, especialmente na Medicina, é bastante superior.
No entanto, não sei se essa medida seria suficiente para resolver o problema. A retenção de profissionais depende muito mais das condições que lhes oferecemos: condições que lhes permitam realizar-se profissionalmente, alcançar a qualidade de vida e os objetivos que idealizaram. Isso inclui ter tempo livre, equilíbrio entre a vida pessoal e profissional, e oportunidades para investigação e formação contínua ao longo da vida.
As pessoas não querem ser escravas do trabalho, nem estar permanentemente mobilizadas para as tarefas profissionais. Querem ter uma vida pessoal, desenvolver projetos de investigação, e ter espaço para crescer ao longo da sua carreira. É isso que temos de oferecer para que digam: “Não preciso de procurar alternativas, porque onde estou sinto-me bem, sinto-me útil e sou recompensado”.
E quando falo em recompensa, não me refiro apenas à compensação financeira. Refiro-me também ao reconhecimento do que fazem, ao valor que dão e ao retorno que recebem – benefícios que vão muito além do salário.
N.S: Com a chegada de mais um hospital privado (Hospital da Luz) a Santarém, levantam-se preocupações com um possível êxodo de médicos do HDS para o privado. Isso preocupa-o?
P.M: Ou podem simplesmente estar em ambos os lados. Isto decorre do que referi anteriormente: alguns médicos não sentem que haja um benefício para si em estarem vinculados exclusivamente como servidores públicos. Preferem ter mais flexibilidade, gerir melhor o seu tempo livre e, por isso, acabam por distribuir o seu trabalho. Fazem algumas horas aqui, uns turnos ali, alguns bancos noutro lado e, eventualmente, serviços adicionais noutra instituição. É normal, e é algo que está a acontecer.
Não acredito que isto seja uma situação permanente, nem que aconteça em todos os casos. No entanto, é um fenómeno que, se formos honestos, reconhecemos que é cada vez mais frequente. É muito provável que os médicos prefiram trabalhar à tarefa em diversos locais, sobretudo porque hoje em dia têm a possibilidade de criar as suas próprias empresas, gerindo a sua vida de forma mais autónoma – o tempo livre, as viagens, os gostos pessoais.
A ideia do “João Semana” é muito romanceada, mas na sociedade em que vivemos hoje, não sei se seria sequer possível existirem muitos “Joões Semanas”. Ainda assim, há médicos que, após concluírem a sua formação, optam por seguir o percurso tradicional: completam a formação geral (o antigo Ano Comum), fazem o internato de formação complementar para se especializarem e, no final, procuram uma vinculação ao SNS, mas sem abrir mão de outras opções. Muitos deles não desejam estar em dedicação exclusiva ou plena e querem manter a possibilidade de explorar outras oportunidades, tanto para a sua realização pessoal como profissional.
Acredito firmemente que o SNS é a base primária e essencial da resposta em saúde em Portugal. Todas as outras realidades – privadas ou sociais – devem ser vistas como complementares à missão do SNS, e não como substitutivas. O SNS tem a responsabilidade de garantir respostas de saúde que muitas vezes os privados não asseguram. Mas vai além disso: o SNS deve estar preparado para acompanhar a pessoa desde o nascimento até ao momento em que, por óbito, deixa de existir.
O sector privado, assim como o sector cooperativo e social, contra os quais não tenho absolutamente nada, devem ser encarados como complementares, e não como uma alternativa à resposta que o Serviço Nacional de Saúde tem a obrigação de dar.
Já dizia Ortega y Gasset que “o homem é ele e a sua circunstância”. Isto significa que somos o resultado daquilo que aprendemos, vivemos e experienciamos. A minha carreira, que já ultrapassa três décadas, moldou a forma como vejo o mundo e o trabalho que faço. E tudo isso leva-me a acreditar que aquilo que fazemos no SNS é fundamental para a vida das pessoas. Sem rejeitar outros modelos, acredito que a Unidade Local de Saúde que presido tem a responsabilidade de garantir essa resposta de forma eficaz e integrada.
N.S: É nos cuidados primários que mais se tem sentido a falta de médicos na região da Lezíria. Há alguma solução para colmatar esta carência?
P.M: A falta de médicos de família tem uma origem bem identificada. Podemos estar a formar médicos, mas demora muito tempo até que estejam plenamente formados. Para se ter uma ideia, uma pessoa que concluiu o 12.º ano de escolaridade estudou durante 12 anos. Um médico especialista estudou mais 12 anos para além desses: seis anos do curso de Medicina, mais um ano de internato e depois mais quatro ou cinco anos de especialidade. Ou seja, um médico demora tanto tempo a formar-se quanto o tempo que uma pessoa demora a completar a escolaridade obrigatória, do 1.º ao 12.º ano – faz-se esse percurso duas vezes.
Assim, formar médicos especialistas e dotar as unidades de profissionais em número suficiente e com a qualidade necessária, que permita garantir os três principais valores – segurança, qualidade e efetividade dos cuidados – é um processo que leva bastante tempo.
Historicamente, durante muitos anos, as faculdades que formavam médicos em Portugal eram muito poucas. Após a criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS), houve um grande afluxo de médicos, mas o número de novos médicos formados nos anos subsequentes foi reduzido. Hoje estamos a viver as consequências desse período: uma grande geração de médicos está a atingir a idade de reforma.
Este contexto justifica uma exceção à lei da reforma dos servidores do Estado. Atualmente, qualquer servidor público que se reforme não pode voltar a trabalhar no Estado, salvo no caso dos médicos. Todos os anos, através da aprovação do Orçamento de Estado, é consignada uma norma especial que permite a recontratação de médicos aposentados por períodos de um ano – o período correspondente ao orçamento desse ano. No dia em que o número de médicos formados e contratados for suficiente para substituir os que se reformam, deixará de ser necessário recorrer a esta norma especial. Contudo, o facto de a norma ainda ser indispensável é a prova de que continuamos a ter carência de médicos.
A solução passa por formar médicos, ter o tempo necessário para os formar e criar condições para que não emigrem, para que se vinculem ao SNS, em vez de optarem por trabalhar no setor privado ou como prestadores independentes, à tarefa, através das suas próprias empresas. É essencial criar condições para que os médicos sintam que ser servidor público é algo bom, nobre, prestigiante e honrado, uma missão de serviço público.
É fundamental trabalhar para que esta realidade aconteça ou volte a acontecer. Não é a competição para ver quem oferece “mais um tostão” que resolverá o problema estrutural. Essa abordagem pode resolver questões conjunturais no curto prazo, mas não resolve o problema no médio e longo prazo.
N.S: O que diz estará relacionado com várias políticas seguidas por sucessivos governos, que vão mudando de mandato para mandato?
P.M: Não sei se têm mudado assim tanto. Acho que existe um grande consenso nacional sobre a necessidade de criar condições para prestigiar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e os profissionais que o servem, para que, no final, possamos cuidar bem da população que existe e que necessita de uma resposta pública com qualidade, segurança e efetividade. São sempre os mesmos três valores, porque são, de facto, a base da medicina e da saúde, e é fundamental que este conjunto de princípios seja garantido.
O caminho não é pensar que, ao entrar uma nova administração aqui, ali ou acolá, os problemas se resolvem automaticamente, como se trouxessem médicos, enfermeiros, técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica, ou outros profissionais nos bolsos. Faltam profissionais em vários grupos? Sim, fazem falta. O caminho faz-se caminhando? Também. É um esforço coletivo da Unidade Local de Saúde (ULS)? Claro que é. Mas, acima de tudo, é um esforço coletivo maior, do Ministério da Saúde e do país.
As pessoas reconhecem valor ao Serviço Nacional de Saúde, bem como competência e capacidade de resposta aos profissionais de saúde, às equipas, às estruturas, aos equipamentos e aos edifícios. Existe uma estrutura criada, e as pessoas reconhecem essa valência. No entanto, muitas vezes é mais fácil sermos influenciados pelas coisas negativas do que sentirmos orgulho naquilo que existe e que é positivo. Frequentemente vejo mais mobilização, mais protestos ou reclamações por um resultado desportivo do fim de semana do que pela construção comunitária de um orgulho e consenso em torno do Serviço Nacional de Saúde.
Felizmente, a maioria das pessoas acredita e confia no SNS. E, obviamente, qualquer pessoa que trabalha no SNS gostaria que esta realidade, mesmo que pudesse ser melhorada, fosse um motivo agregador e de orgulho para todos.
Não há nenhum utente que esteja desprotegido do acesso a cuidados de saúde. Essa é a questão mais importante: garantir o acesso. É natural que qualquer comunidade queira mais e melhor, e é obrigação de quem administra e governa criar condições para que isso aconteça nos casos em que ainda não sucede. Esse é um compromisso recorrente, que está constantemente em cima da mesa, e para o qual se procura sempre encontrar uma solução.
O mais relevante é perceber que nenhum utente da Unidade Local de Saúde está desprotegido nos cuidados primários, tal como não está desprotegido nos cuidados hospitalares, incluindo no acesso aos serviços de urgência.
Seguramente, irão continuar a ser desenvolvidos estudos e análises para encontrar soluções que possam dar uma melhor resposta à população. É igualmente importante destacar que a ULS é uma entidade jovem, com apenas um ano de atividade. Começou funções no ano passado.
Assim, nesta fase de integração de cuidados, é essencial avaliar e aprofundar os mecanismos que já existem, como as consultas abertas, a rede de urgências, a complementaridade dos serviços que são assegurados em primeira linha, a articulação com a Linha Saúde 24 e a priorização dos casos de urgência. Estes elementos precisam de ser trabalhados para que possamos encontrar as respostas mais seguras, de maior qualidade e mais efetivas para a população.