“O objectivo sempre foi terminar com um governo mau, autoritário, antidemocrático” contam Capitães de Abril Correia Bernardo e Garcia Correia

24 Abril 2024, 18:00 Não Por André Azevedo

No ano em que se celebra o 50º aniversário do 25 de Abril de 1974, uma das datas mais importantes da história portuguesa, o NS foi conversar com quem viveu, na primeira pessoa, o planeamento e execução da revolução que depôs o regime fascista e restaurou a liberdade em Portugal.

Esta reportagem tem como protagonistas os (na altura) capitães Correia Bernardo e Garcia Correia, figuras importantes na definição do plano revolucionário, especialmente no designado Plano B, que previa a defesa da cidade de Santarém, caso as acções em Lisboa não tivessem o resultado esperado.

Agora já reformado do exército, onde atingiu o posto de Coronel, Correia Bernardo leva agora uma vida pacata em Santarém. O “Capitão de Abril” conta ao NS que o descontentamento era comum e geral à população portuguesa. A sonegação da liberdade, a censura, as prisões políticas ou a coação da PIDE deixava o âmago dos populares revoltado, mas pouco ou nada podiam fazer contra o Estado.

As Forças Armadas estavam em plena Guerra Colonial, o que os mantinha de “prato cheio”, mas eram os únicos com o poder necessário para pôr fim ao regime fascista.

O antigo militar conta que a revolta começou a estalar no seio militar quando os oficiais, nomeadamente o posto de capitão, começou a escassear nos quadros do exército. “Era um dos postos mais importantes porque eram quem comandava as tropas no combate”, explica Correia Bernardo.

Capitão Correia Bernardo

Com essa escassez de homens, foi decidido por decreto que os oficiais milicianos (aqueles que obtinham o posto de oficial por meio de progressão da carreira) passavam a ser equiparados aos oficiais de carreira (os que completavam a academia militar).

A estagnação da Guerra Colonial começava também a incomodar os militares. “Fazíamos uma, duas, três ou quatro comissões de serviço e víamos que nada mudava”, explica o também já reformado, com o posto de Coronel, Garcia Correia.

Esta contestação levou a que os oficiais, especialmente capitães, começassem a unir-se em torno de um objectivo comum – Pôr fim ao descontentamento vivido no seio militar. Que acabou por evoluir para o objectivo de pôr um ponto final ao regime político.

Corria o mês de Setembro de 1973 quando em Alcáçovas, no distrito de Évora, num monte alentejano, se reuniram mais de 150 capitães do Exército, que formaram, primeiramente o Movimento dos Capitães. Dessa primeira reunião nasceu uma exposição geral assinada posteriormente por mais de 600 militares que listava os vários descontentamentos do sector. “Nasceu também a ideia do temos de fazer alguma coisa”, relembra Correia Bernardo.

As decisões eram partilhadas, no mais apertado secretismo, com os oficiais destacados em combate nos territórios ultramarinos, através de correspondência trocada “entre primos de primos e amigos de amigos”, explica Garcia Correia, garantindo que estas cartas escapavam à censura da PIDE.

Em Outubro de 1973 os oficiais destacados em Angola tomam uma decisão: Apresentar a demissão do Exército Português. É enviado um representante ao continente para comunicar com o Movimento dos Capitães esta decisão. “Pagámos um avião da TAP às nossas custas para ele vir a Portugal” relembra Garcia Correia, que por esta altura estava destacado em Luanda.

Durante Outubro há uma segunda reunião, feita em quatro casas diferentes, por telefone fixo, para evitar ajuntamentos como em Alcáçovas. Correia Bernardo conta que é nesta reunião que o sentimento de “fazer alguma coisa” evolui para a possibilidade de usar a força e depor o regime.

Em Novembro do mesmo ano, dá-se a chegada de um dos principais homens desta revolução – Fernando Salgueiro Maia. Regressado da Guerra Colonial, é integrado nos quadros da Escola Prática de Cavalaria de Santarém e passa a integrar o Movimento de Capitães, que viria a evoluir para o conhecido Movimento das Forças Armadas (MFA) quando passa a incluir oficiais de patentes mais altas como o Major Otelo Saraiva de Carvalho, entre outros.

Ainda em Novembro, dá-se outra reunião do MFA, em Aveiras, em que se decide que a preparação e liderança operacional do movimento será entregue aos oficiais da Escola Prática de Cavalaria. “O Salgueiro Maia começou a desviar munições de Santa Margarida através da instrução. Devia-se dar um tiro por cada oito instruendos e ele passa a dar um por cada 16”, explica Correia Bernardo.

A preparação das viaturas ficou a cargo de Garcia Correia que regressara de Luanda e ficara ao comando da unidade onde se reparava as viaturas militares, instalada no edifício onde está actualmente a Polícia de Segurança Pública, longe de olhares indesejados.

“Não aparecia praticamente ninguém no destacamento, era o sítio ideal para preparar e recuperar as viaturas”, garante Garcia Correia.

Capitão Garcia Correia

A primeira tentativa falhada

A primeira tentativa de golpe militar partiu das Caldas da Rainha, mas falhou rapidamente. Sem o apoio de Santarém, por não estarem preparados, sem homens e sem munições suficientes. Correia Bernardo relembra a noite de 13 de Março. “Estava em casa e recebi um telefonema a convidar-me para ir jogar um bridge”, conta. Este era o código que significava que era absolutamente necessário reunir. “Despedi-me da minha mulher e fui a casa do Salgueiro Maia”, relembra.

Ao chegar deparou-se com um oficial das Caldas da Rainha. A coluna estava pronta para sair, o comandante da unidade estava preso e não havia volta a dar. A tentativa fracassou e foram presos mais de uma centena de militares.

Manter o secretismo do que estava a ser cozinhado era absolutamente essencial para o sucesso da operação, mas era igualmente difícil. Correia Bernardo relembra a história de um oficial miliciano que foi colocado na EPC em Janeiro de 74 e causou muita desconfiança. Ficou a trabalhar sobre a alçada de Correia Bernardo para ficar debaixo de olho. Porém, da mesma maneira que era controlado, controlava também o que acontecia no gabinete do capitão. “Uma vez recebi uma chamada do Capitão Vasco Lourenço a dizer que não estava a chover em Lisboa”, um código para passar informações sobre o que acontecia na capital. Já em Março, o Correia Bernardo acaba por pôr este oficial ao corrente do plano. “Foi logo perguntar a outro capitão quem é que eu era e que lhe tinha dito o que se estava a preparar, para saber se era verdade porque não confiava em mim”, relembra o “Capitão de Abril”.

Apenas os homens de confiança fora da esfera do MFA estavam ao corrente do que se estava a preparar. “Em Março chamei uma série de militares em quem confiava à biblioteca para os pôr ao corrente do que se passava”, relembra Correia Bernardo.

A noite de 24 de Abril

Na noite de 24 de Abril a tensão era palpável. O capitão Garcia Correia foi designado com a missão de pôr ao corrente o segundo comandante em funções (o Comandante estava fora da unidade, devido a uma consulta médica fora do concelho) da Escola Prática do que estava a acontecer. Para isso convidou-o para jantar em sua casa, garantindo ainda o tempo necessário para preparar homens e viaturas na parada chaimite da EPC.

Depois de Garcia Correia ter informado o comandante do que se estava a preparar, este tentou demovê-lo. A única informação que deixou de fora, deliberadamente, foi que a coluna marcharia em direcção a Lisboa nessa mesma noite. Seguiram para as instalações da EPC e o comandante acabou detido e impossibilitado de comunicar com o exterior.

Embora a “Revolução dos Cravos” tenha decorrido de forma pacífica, sem grandes confrontos armados, a coluna ia preparada para o combate. Os carros estavam armados com as munições acumuladas ao longo dos últimos meses e a coluna era composta por militares e oficiais com experiência no teatro de guerra.

“Houve a preocupação de escolher militares que soubessem o que é um tiro, que soubessem disparar uma rajada e que já tivessem estado debaixo de fogo, com a capacidade para aguentar”, relembra Correia Bernardo.

O Plano B

Correia Bernardo e Garcia Correia não rumaram a Lisboa. A missão deles era outra. “Despedi-me do Maia com um abraço fraterno. Eles rumaram a Lisboa e nós começámos a preparar o designado Plano B” recorda Correia Bernardo.

O objectivo dos dois capitães era preparar a defesa da cidade de Santarém. Caso a deposição do Governo falhasse, Santarém, nomeadamente a zona do planalto, ia ser o refúgio dos soldados revolucionários que escapassem e conseguissem regressar.

“Durante a preparação fez-se o reconhecimento dos pontos nevrálgicos para a defesa da cidade”, explica Correia Bernardo. Devido às características geográficas de Santarém, que se situa no topo de um planalto, era relativamente fácil defender a cidade de investidas militares.

As viaturas mais pesadas, nomeadamente tanques e blindados que se locomoviam com lagartas, e que tornariam a coluna militar que rumou a Lisboa lenta, foram colocadas em pontos estratégicos, espalhados pela cidade. Na porta da EPC ficou colocado um tanque, embora inutilizado, e uma arma pesada.

“Mesmo inutilizado um carro de combate e uma arma pesada à porta da escola, no mínimo mete medo”, atira entre risos Correia Bernardo.

Intenção nunca foi assumir o Governo do país

Correia Bernardo explica que a intenção por trás desta revolução nunca foi que os militares assumissem os destinos do país. “O objectivo sempre foi terminar com um governo mau, autoritário, anti-democrático, com uma polícia que não nos deixava falar, não deixava escrever”, explica Garcia Correia. Era esta também a única forma de terminar com a Guerra Colonial, a principal fonte de desagrado dos militares.

O discurso de Salgueiro Maia, em que refere a famosa expressão “há várias modalidades de estados e há o estado a que isto chegou”, passa exactamente a mensagem que o objectivo é devolver à população o poder de escolher o Governo que as represente.

Correia Bernardo recorda que a Salgueiro Maia, como a outros oficiais, foram oferecidos cargos de Ministro e que foram sendo recusados, pois não fazia parte da missão.

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