O Hotel Lux, em Fátima, foi palco de mais um estágio de preparação da Associação de Futebol de Santarém (AFS) para a nova época desportiva. Entre sessões de treino, testes físicos e momentos de convívio, dois árbitros chamaram a atenção: José Morgado, com 68 anos e 35 de carreira, e Salvador Carvalho, de apenas 15, que há um ano iniciou o seu percurso na arbitragem. Representam duas gerações distintas, mas ambos partilham a mesma paixão pelo apito.
Salvador Carvalho conta que a decisão surgiu de forma inesperada. “Estava numa festa e uns colegas, que já eram árbitros, convidaram-me. Aceitei e acabei por entrar. Já jogava futebol, mas a arbitragem acabou por me conquistar”, recorda.
Já José Morgado seguiu outro caminho. Começou no desporto ainda criança, jogou futebol federado, mas uma lesão cardíaca afastou-o da competição. “Quando percebi que já não podia jogar, decidi inscrever-me no curso de árbitro. Estava prestes a completar 33 anos, a idade limite na altura. Fiz o curso, comecei a apitar aos fins de semana e nunca mais parei”, explica. Três décadas e meia depois, continua ativo: “Só vou parar quando Deus quiser.”
No início, Morgado admite que a adaptação não foi fácil. “Apitava três jogos num fim de semana, muitas vezes em ambientes complicados. Havia clubes em que o barulho das bancadas era ensurdecedor. Mas aprendi a lidar com isso, a falar com os jogadores, a ganhar respeito.”
O veterano defende que o diálogo é essencial. “Falo muito com os capitães, porque eles ajudam a gerir o jogo. Quando o jogador sente que é ouvido, tudo se torna mais fácil.”
Já Salvador, ainda em fase de aprendizagem, assume que procura adotar uma postura próxima. “Gosto de falar com os jogadores, quase como amigos. Isso ajuda a evitar conflitos e torna o jogo mais fluido.”
Apesar da diferença de idades, há uma visão comum: a autoridade do árbitro constrói-se em campo, jogo após jogo.
A arbitragem é uma atividade marcada por críticas constantes, algo que ambos aprenderam a relativizar. “Eu não ligo. Sei o que custa estar lá dentro. As pessoas veem só a camisola do seu clube e esquecem que nós também erramos, porque somos humanos”, afirma Morgado.
Salvador, mais novo, admite que o apoio dos colegas e formadores é essencial para lidar com a pressão. “Eu foco-me no jogo e tento dar o meu melhor. Sei que tenho potencial e quero crescer com isso.”
Ambos concordam que a falta de compreensão do público é um dos maiores obstáculos. Para Morgado, “é preciso saber ouvir e calar, porque responder só nos põe ao nível da bancada”.
Ao longo dos anos, José Morgado acumulou episódios caricatos. “Uma vez, num jogo de juniores, um jogador atirou-me uma bota quando saía para o balneário. Noutra, nos Amiais, tropecei no sintético e caí de cambalhota. De repente, médicos e massagistas corriam para me socorrer. No fim, rimo-nos todos. As pessoas são muito melhores do que às vezes se diz.”
Já Salvador guarda na memória a primeira final que apitou. “O ambiente era incrível, vibrante. Percebi que era isto que queria fazer.”
As mudanças regulamentares também foram tema de conversa. A nova proposta para o fora de jogo — só marcado quando o corpo todo do atacante estiver à frente do defesa — merece a aprovação dos dois. “Vai permitir mais golos e tornar o espetáculo mais atrativo”, defende Morgado.
Salvador olha ainda mais longe. “Quero chegar ao topo, ser árbitro internacional. Sei que nada é impossível se trabalhar para isso.”
Morgado, por seu lado, nunca alimentou essa ambição. “Quando entrei, já era tarde para sonhar com os nacionais ou internacionais. Vim para apitar, dar o meu melhor. E é isso que continuo a fazer.”
O peso das bancadas e o papel dos pais
Um tema sensível é o comportamento do público, sobretudo nos escalões jovens. Ambos consideram positiva a medida implementada em Almeirim, que proíbe insultos nas bancadas. “Os pais acham sempre que os filhos vão ser Cristianos Ronaldos. Acabam por pressionar, criar mau ambiente e até discutir entre eles. Essa regra devia ser aplicada em todos os campos”, defende Morgado.
A convicção é clara: educar as bancadas é tão importante como formar jogadores e árbitros.
À entrada para mais uma época, Salvador quer continuar a crescer: “O meu objetivo é fazer bem todos os jogos que me forem atribuídos, aprender e progredir.” Já José Morgado mostra-se sereno: “Quero fazer o maior número de jogos possível. Levo isto a sério e, enquanto tiver condições, cá estarei.”
Entre a experiência do veterano e a ambição do estreante, a arbitragem da AFS ganha força. Dois caminhos que se cruzam num ponto comum: a paixão pelo futebol e a vontade de servir o jogo.